sábado, 28 de setembro de 2013

CONEXÃO AMAPÁ-HOLANDA

     Mesmo sob perseguição portuguesa, foi intenso o comércio entre holandeses e índios no extremo norte do Brasil.
     Lodewijk Hulsman.
     Pieter Swaerooch era um comerciante de arenque na cidade de Enkhuizen, norte da Holanda. Seu filho, Jan, pertencia a outra geração: foi um dos muitos holandeses que desbravaram a Amazônia no século XVII, especialmente na região do Amapá. Esta aventura específica acabou em tragédia, com o desaparecimento de Jan. Seu pai foi em busca de justiça e, com isso, nos legou documentos preciosos para entender aqueles tempos.
     Duas testemunhas viajaram com Jan Swaerooch para o rio Amazonas em dois momentos. Na primeira viagem, no início do século XVII, foi com o carpinteiro Pieter Luijt, que declarou que Jan tinha sido deixado como feitor, acompanhado por dois marujos, na costa do Amapá. Luijt foi encarregado de negociar mercadorias com os índios e preparar uma carga para Jan. Como este não apareceu, Luijt trocou parte de seu carregamento por uma passagem de volta à Holanda. Declarou também que os índios dali estavam livres e que Jan nunca roubara nada de ninguém, exercendo um comércio pacífico. Na segunda viagem, em 1615, a testemunha foi um garoto que servia como trompetista no navio de Jan Swaerooch.
     Ele declarou que a embarcação fora atacada e queimada por portugueses, que mataram toda a tripulação e só pouparam a vida dele. Ao tomar conhecimento deste depoimento, Swaerooch, pai, alegou que a ação dos portugueses era um crime, porque os holandeses tinham um tratado de paz com o rei Felipe da Espanha e de Portugal. Seu filho não era pirata, mas um comerciante legítimo. 
     A visão dos portugueses era diferente: os holandeses eram, sim, piratas ou corsários. Qualquer comércio direto com os índios era considerado uma infração, pois eles eram propriedade do rei de Portugal, como estabelecia o Tratado de Tordesilhas.
     A república dos Países Baixos vivia a trégua dos 12 anos (1609-1621), oficialmente em paz com Portugal e Espanha, ambos sob a tutela de Felipe III. À época, companhias holandesas estabeleceram feitorias na costa das Guianas, do rio Orinoco à foz do Amazonas. Elas eram abastecidas por navios holandeses, que também levavam provimentos às feitorias dos ingleses e irlandeses, concentradas na costa do Amapá, entre o Cabo do Norte e o rio Paru. 
     Não faltam registros e relatos desse período. Em 1618, por exemplo, Lourens Lourensz viajou como marujo da província holandesa de Zelândia para o Amapá. Sua embarcação naufragou pelo efeito da pororoca no rio Clapepour. Ele se salvou com mais dois companheiros, mas caiu nas mãos dos índios aracouros, dos quais foi escravo durante oito anos. Por sorte, um dia foi encontrado por zelandeses que comercializavam na costa, e enfim libertado em troca de um fuzil e alguns machados.
     Finda a trégua, a situação tornou-se ainda mais complexa, com a volta da guerra e da perseguição portuguesa. Holandeses cogitaram fundar uma colônia no delta amazônico em 1623. O grupo – vindo da região da Valônia – chegou à costa do Amapá no momento em que um ataque do capitão Luís Aranha de Vasconcelos tinha acabado de ser rechaçado dali. Aranha viera do rio Xingu, mais ao sul, onde tinha destruído dois fortes zelandeses. Os valões visitaram as plantações de tabaco feitas por ingleses e irlandeses na serra do Tucuju, mas preferiram não ficar lá com medo dos ataques dos portugueses. Na volta, conheceram o sítio Roohoeck, atual Macapá, onde foram encontradas urnas funerárias indígenas, indicando que os nativos começavam a se retirar dali para evitarem as incursões dos colonos portugueses de Belém.
     Índios e europeus uniam-se para plantar e exportar principalmente tabaco, além de madeiras nobres, urucu e algodão. A demanda do tabaco estava em alta na Europa e o produto ainda mais valorizado depois de os espanhóis proibirem o cultivo no Caribe, em 1606. Centros produtores posteriores, como Barbados e Virgínia, ainda não estavam em funcionamento. A cidade de Vlissingen, na província da Zelândia, era o centro do comércio do tabaco amazonense nos Países Baixos, servindo de base também para as empresas inglesas e irlandesas.
     Os mercadores zelandeses que participavam da Companhia das Índias Ocidentais insistiram em novas expedições mesmo depois da destruição dos fortes no rio Xingu. Um assentamento estabelecido perto de Mandiatuba, em 1625, por uma expedição chefiada por Nicolaes Oudaen, foi destruído pouco tempo depois da sua fundação. As forças portuguesas continuavam a destruir as plantações e as casas-fortes na costa do Amapá, ao sul do rio Anuerapucu. A última grande expedição partiu de Vlissingen em 1629, incluindo muitos irlandeses. Sob o comando do capitão Gelein van Stapels, ergueram uma fortaleza em Torego, ao sul do rio Anuerapucu, e plantaram tabaco junto com os índios. 
     Um dos integrantes da expedição, Gedion Morris, foi feito prisioneiro pelos portugueses e teve de trabalhar como feitor durante sete anos. Depois que voltou para Zelândia, escreveu vários relatos sobre suas experiências. Segundo ele, os índios tockeans e aruans que comercializavam com os holandeses eram punidos com a escravidão. Depois do fracasso de Torego, os holandeses desistiram de grandes empreendimentos na costa oriental do Amapá, que começou a ser despovoada.
     Mas a presença holandesa não se limitava àquela região. Desde o início do século XVI, navios aportavam na costa Atlântica entre o Cabo do Norte e o Cabo Orange – no extremo norte do Amapá e do Brasil. Ancoravam perto dos lagos do rio Maiacaré e lá compravam peixe-boi dos índios, depois salgado e conservado em barris. A iguaria tornou-se um prato regular na mesa dos soldados holandeses no Suriname. Em 1670, o governador Lichtenberg escreveu que aquela carne, se obtida entre abril e junho, começava a apodrecer apenas em dezembro. E avisou que um carregamento de machados, facas, contas e outras mercadorias era essencial para comprar peixe-boi junto aos índios na costa de Amapá. De Maricary os navios zarpavam novamente, passando pela costa da Guiana e entrando no mar do Caribe.
     Jan Claes Langedijck foi um dos que compraram peixe-boi dos índios no rio Aricary, nome dado pelos holandeses ao rio Calçoene, quando de uma parada em sua viagem para a ilha de Caiana, onde fundou uma colônia holandesa em 1655. A iniciativa cresceu a partir de 1660, com a chegada de colonos judeus experientes no cultivo da cana no Brasil. Os peixes-boi que alimentavam esses colonos no Caribe continuaram sendo adquiridos na costa atlântica do Amapá.
     Em 1689, Jan Reeps – outro Jan – recebeu uma patente dos Estados Gerais – o supremo governo da República Neerlandesa – para fundar uma colônia entre o Cabo Orange e o Cabo do Norte. Ele divulgou num panfleto que os índios gostavam dos holandeses e com eles comercializavam peixe-boi, urucu e tabaco. Mas a expedição de Reeps naufragou na costa do Maranhão e os sobreviventes passaram por muitas aventuras antes de conseguir navegar até o Suriname.
     Os povos indígenas não eram clientes fáceis. As mercadorias que os holandeses levavam para troca não eram produtos baratos, e os índios muitas vezes os recusavam. Os holandeses chamavam o carregamento de cargasoen: uma gama de produtos para clientes específicos. Para o comércio com índios, o cargasoen tinha sempre machados de vários tipos – em geral entre 500 e 1.000 unidades – milhares de facas de formas e tamanhos diferentes embaladas em barris, e enxós para fazer canoas. As contas de vidro eram um produto especializado, logo incorporado pelas sociedades indígenas nas miçangas e como adorno de urnas funerárias.
     Os marinheiros deram nomes holandeses aos lugares no Amapá: Appelrack (igarapé de maçã), Naugat (buraco estreito), Hoek van Waterhuys (esquina da casa d’água) e Roohoek (esquina vermelha). Muitos nomes desapareceram, como Aripoke, Sapenou, Weye, Waetali e Puripore. Outros ficaram, como o do rio Araguari, originalmente Arriwarie. Na costa atlântica há o rio Clapepouri, onde Lourens naufragou em 1618. Mais ao norte, o rio Cassepourié hoje chamado de Cassiporé. A maioria dos povos da região não pertencia ao tronco linguístico Tupi, mas aos troncos Aruaque e Caribe. Na mistura de nomes e línguas, mais um testemunho daquelas intensas relações: holandeses e indígenas convivendo no Amapá.
Os muitos povos do Amapá
     No século XVII, a área do Amapá era habitada por vários povos indígenas. No norte, perto do rio Cassiporé, viviam os aracouros, ancestrais dos palicours que hoje vivem em torno do rio Uaça. Os mayés, que habitavam os pantanais ao sul do Cassiporé, desapareceram e só deixaram seu nome no Monte Mayé. Moravam em casas de palafitas, onde se entrava por pontes feitas de árvores, parecidas com as dos waraos, que vivem no delta do rio Orinoco. Os aricaris, que tiveram um grande comércio de peixe-boi com os holandeses, também desapareceram. Parte deles se mudou para oeste da ilha de Caiana na metade do século XVII. 
     Os maraons, que habitavam o interior e a aldeia Sapenou, integraram-se aos palicours com o nome de marawan. Os aruás ou aruãs, que viviam nas ilhas da foz do rio Amazonas e na costa ao sul do Cabo do Norte, desapareceram no século XIX. Eles foram parceiros comerciais dos holandeses durante muito tempo. Os tockeans, provavelmente os tucujus encontrados em fontes portuguesas, também se integraram aos palicours. O destino dos yaos, grandes aliados dos holandeses, ainda não foi identificado pelos antropólogos e historiadores. Talvez sejam ancestrais dos atuais tiryós.
     Lodewijk Hulsman é historiador da Universidade de Amsterdã e coautor do Guia de Fontes Holandesas (Projeto Resgate, 2001).
     Disponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/conexao-amapa-holanda